Wednesday, 2 June 2010

COMRADES 2010. Uma aventura portuguesa.

Ouvia falar das Comrades á uns anos atrás. Quando lia o Lore of Running. Livro que é escrito por um medico Sul Africano que corria ultra maratonas. Recomendo vivamente a leitura a todos os amantes da corrida. Embora seja mais um livro mais de consulta que de leitura "fio a pavio".
A ultima das Comrades foi disputada no passado dia 30 de Maio. Entre os participantes deste ano estava o Pedro Belchior.

O Pedro pertence ao meu grupo de treino "social" do Estadio Nacional. Já tem algumas maratonas nas pernas e é igualmente um "triatleta a espaços". Tendo já concluido um Iron Man. Desta vez lançou-se a um novo desafio. As COMRADES.

De seguida segue a sua cronica da prova. Muio, muito bom!! Parabens Pedro.
"Caros amigos,

Estou já a caminho de Lisboa, na nossa magnifica companhia aérea, a tentar dar-vos conta das emoções que vivi nesta impressionante prova de corrida de 89,3km.

Pré Comrades

Meus amigos, a prova começa aqui.

A minha preparação começou em Dezembro. Desde ai até à prova no dia 30 de Maio fiz 17 treinos logos, todos acima de 35km e até um máximo de 56km.
Participei em 5 maratonas oficiais e uma ultra maratona.


A Comrades

A Comrades alterna todos os anos o sentido da corrida entre Durban e Pietermaritzburg sendo um ano uphill e no seguinte, nem por isso menos dificil, downhill. A prova tem muito poucos segmentos planos, sendo disputada num ondular permanente, com subidas e, este ano, descidas demolidoras. Em 2010 subimos aproximadamente 1100m e descemos 1700. É totalmente dominada por africanos, principalmente sul africanos, e por Russos, e o corredor típico não é o skiny Keniano das maratonas, que nem se atreve a vir, mas pessoal mais encorpado e tb com mais massa gorda (QB).

Este ano, e por ser a 85ª edição, alinharam na partida 22000 atletas.

Existem milhares de ferverosos adeptos ao longo de toda a prova. Mesmo nos sítios mais remotos e ao longo dos 89km não se fazem 100mts sem apoio. Eu já participei em todas as maiores maratonas do mundo, mas esta sendo de percurso linear de um ponto ao outro (tipo maratona de Boston) é absolutamente impressionante.
A prova tem um tempo máximo para chegar à meta de 12h e vários cutoffs ao longo da prova, em que quem não consegue passar dentro desse tempo é imediatamente excluído. O conhecido chip time não é contabilizado para o tempo final de prova.

É conhecida como a mais popular, mais antiga e mais dura ultramaratona de estrada do mundo. Correu-se este ano a 85ª edição! Diz-se que todo o sul africano tem de fazer a prova pelo menos uma vez na vida.

A prova é transmitida ao vivo na TV durante todo o tempo! O período que antecede as 12h de prova é o com maior audiência. O primeiro atleta a não conseguir as 12 h tem direito a tempo de antena visto por todo o país.

Uma particularidade interessante, os kms são marcados por ordem decrescente.


A minha prova

Começámos a prova às 5:30 da manhã na cidade de Pietermaritzburg com 3ºC. Inicialmente fomos brindados com um tradicional cântico zulu seguido do hino da África do sul e depois pelos Vangelis com "cheriots of fire", até fico emocionado só de relembrar... segue-se um canto de galo e um tiro de canhão (literalmente).

Partimos um grupo de 9 Tugas, todos com diferentes perspectivas e abordagens. Eu comecei com o Tiago Dionisio, o nosso maratonista mais experiente, com cerca de 130 maratonas concluídas e 9 Comrades!, e com o Luis Pires, tb um experiente maratonista e ultra. Resolvemos, eu e o Luis, aproveitar a boleia do Tiago pois embora tencionasse ir para sub 8h disse-nos que iria ser conservador na primeira metade, pelo que só tínhamos de nos atrelar e aproveitar, visto que sub 8 era um tempo que embora possível, era muito audaz.

Foi exactamente o que fizemos, embora a meu ver tenhamos começado algo lento para as perspectivas, principalmente no inicio (primeiro 1/4), período em que tb fomos afectados pelas várias paragens de modo a satisfazer as mais diversas necessidades fisiológicas, que foram muitas, do Tiago que tem uma bexiga do tamanho de uma azeitona, do Luis que tb não aproveitou a multidão da meta para se aliviar quando ninguém dá por isso... mas eu tive o privilégio de ter sido o que mais tempo tive para desfrutar da savana africana...( nem todas as nossas necessidades demoram o mesmo tempo...), claro que o Luis fez logo um reparo em relação ao tempo que demorei no trono africano...

O segundo quarto da prova tinha menos subidas e era menos duro e aproveitamos para meter um pouco de andamento. Tínhamos terminado os primeiros 22,5km com 5min de atraso em relação ao target. Recuperamos 2min e a meio da prova estávamos com 4:03h, ainda assim 3 min atrasados. Vimos logo que a hipótese dos sub 8 era missão impossível, mas tanto eu como o Luis ficaríamos contentes com sub 9, embora soubéssemos que as 8:30 estavam ao nosso alcance e esse era agora o nosso objectivo.

A partir dos 44km começaram os problemas. Durante as longas e inúmeras subidas comecei a ficar com imensas dores no joelho, e vi a vida a andar para trás... A técnica do Tiago, tal como recomendam todos os especialistas nestas provas, sugere que nas subidas mais íngremes se façam alguns períodos a andar, que não só servem para poupar energia onde ela se gasta mais, mas tb alterar a postura e a forma do movimento. Esses segmentos não eram mais do que 15 a 30seg de cada vez e raramente fazíamos mais do que dois numa subida. Acontece que quando andava ficava pior das dores no recomeço da corrida. Pensei que iria chegar a um ponto em que só me iria restar acabar a corrida a andar e tentar ficar nas 12h. A verdade é que pouco depois das subidas acabarem ficava melhor e recuperava o suficiente para continuar com os meus Comrades, embora nitidamente a atrasa-los um pouco. Ainda lhes sugeri que se fossem embora porque estavam, na altura, melhores que eu. O Tiago e o Luis foram extraordinários e continuámos juntos.

Cumprimos os 70km e, como esta parte do percurso tinha mais decidas que subidas, consegui voltar a recuperar e manter um andamento regular.Apenas claudicava nas subidas. Claro que o Tiago andava para a frente e para trás a passear, altura em que eu e o Luis sugerimos uma vez mais, que não hipotecasse a sua prova, visto que estava francamente melhor que nós, mas ele, com a humildade que o caracteriza, disse que sempre acabou a Comrades sozinho e que este ano não o ia fazer. Aos 74km o Luis começou a fraquejar nas descidas e eu, que seguia um pouco mais à frente pois não podia parar por causa do joelho, tb já não conseguia virar-me para trás..., ia perguntando ao Tiago pelo Luis, que a partir de certa altura disse que tinha de começar a andar até nas descidas, ou seja, estava morto..., não valia a pena esperar porque íamos num óptimo ritmo.

Os últimos 14km foram sempre a abrir. Depois de ver a placa que diz 21km para o final senti uma enorme força que durou até ao final. Já só faltava uma meiazita...
Quando fizemos a ultima e enorme descida comecei com umas dores horríveis nas costas, ainda me passou pela cabeça pedir uma massagens em andamento ao Tiago... ele dizia que era normal..., claro já tínhamos 82km e corríamos a 4:50/km! Durante as rectas que antecedem a majestosa entrada no Sahara Stadium em Durban ainda comentei com o Tiago que fazia mais 10 ou 15km, todo lixado, mas fazia. A chegada ao estádio é arrepiante, com milhares de pessoas a aplaudir, um ambiente fantástico e uma festa e emoção indiscritível. A minha Filipinha voltou a encontrar-me mesmo na recta final, onde me deu a bandeira de Portugal com que passei a meta de mão dada com o Tiago.

O Tiago ganhou um "green number" que significa que completou 10 Comrades o que lhe dá o direito de usar o mesmo numero para sempre. Privilégio apenas para alguns e com direito a pequena cerimónia após a entrega da medalha. Eu estava lá :-)

Terminei a prova em 8h17e fiquei em 1381 da geral. Fiz um pace médio de 5:32min/Km, variando entre 4:25 e 8:28! O Luis tinha mesmo morrido e acabou por fazer 8h44 depois de ter andado em grande parte das descidas.


Emoções

Meus caros, sensações e emoções como estas, só quem passa por elas é que sabe como são. Para mim, só comparável com a de ter cruzado a meta do Ironman de mãos dadas com os meus filhos, dos quais senti muito a falta por sinal.

Mas tive mais uma vez o apoio incondicional da Filipa, que me tem apoiado em 99% das grandes provas a que vou e que tb faz a sua própria corrida, de forma a ver-me no maior numero de spots possíveis. Desta vez foram seis os sítios onde me viu!!!! Fazemos um pequeno briefing no dia anterior e ela fica com um pace igual ao que eu levo para a prova, ficando a saber os meus supostos tempos de passagem em todos os kms. Conhece-me melhor que ninguém e confessa que ficou preocupada quando aos 46km nos encontramos e lhe disse que me doía o joelho.


Cutoff 12h

No final de cada hora existe um grupo de pacers, chamado "bus", que ajuda os atletas a cumprir determinado tempo. Quando alguém perde o bus, não consegue atingir o objectivo a que se propôs. Isto é tão mais verdade quando se trata do bus das 12h, em que quem perde o bus é pura e simplesmente afastado da corrida, impedido de cortar a meta e fica sem direito à medalha de finisher.

Quando se aproxima um bus é sempre uma festa, pois são dezenas de atletas em delírio por conseguirem atingir o objectivo desejado. Por outro lado, os desgraçados que vêm imediatamente atrás, tentam sprintar.... após 89km... para tentarem cumprir... Agora imaginem o desespero dos bus das 12h... Um desgraçado estava a 100mts da meta e faltavam 2min para as 12h. Deram-lhe cambrias nas duas pernas, ficou agarrado a um separador do publico completamente impedido de andar sequer e a ver os segundos a passar... desespero total, só abanava a cabeça e chorava, ainda me passou pela cabeça ir ajuda-lo mas seria ele e eu desqualificado. Todo o publico em desespero a tentar dar-lhe força, mas não conseguiu. Pessoas que treinaram no duro durante seis meses totalmente desesperadas e em choque por não terem acabado por segundos. Ficaram 8000 pelo caminho....

3 minutos antes do final começa a tocar a musica que ouvimos no inicio, "chariots of fire". Arrepiante.

A grande maioria dos atletas que já terminaram a prova ficam a assistir a prova até ao final e a apoiar os sobreviventes. Até os Prós ficam.

A Comrades é isto meus amigos, um desafio físico e um teste à determinação e à capacidade de sofrimento. Na minha opinião 50/25/25.


Os Tugas

No nosso grupo fomos nove, e todos contemplados com uma medalhinha pequenina mas muito valiosa.

O "animal" do nosso grupo é evidentemente o Manel Machado, que fez 6h49 e ficou em 174 da geral. Nós somos apenas animaizinhos que conseguimos cumprir os objectivos.

Parabéns aos COMRADES Manel Machado, Tiago Dionisio, a mim próprio (não fica mal, pois não), Luis Pires, Pedro Amorim, António Conde, Luis Mota Freitas, Rui Guedes e Zé Carlos Costa.



Agradecimento

Ao Pedro Amorim por me ter desafiado para esta magnifica aventura, ao Tiago por me ter transportado até à meta, à Filipa por me aturar e me acompanhar até durante a prova , e ao Manel Machado pela ajuda nos treinos mais longos.
E por falar em treinos, obg tb ao meu filho Rodrigo e ao Gonçalo Amaro, que com 10 e 12 anos me acompanharam de bicileta em treinos de mais de 40km dando-me água e gels!, ao Carlos Amaro que tb me acompanhou de bicla, ao pessoal do estádio que ajudou a meter andamento como o Rui Campos, Paulo Guedes e Miguel Graça, aos Ironmans João Paulo Durão e Miguel Palma, que tb fizeram parte dos treinos longos comigo, ao Zé Miguel Carvalho que tb ajudou em alguns segmentos, e tantos outros.


Espero terem ficado com uma ideia desta magnifica prova e com vontade de tentar a ULTIMATE RACE.

Se tiverem curiosidade em saber mais alguma coisa acerca da prova ou mesmo ver um dos vários videos de mim ou qualquer outro participante é só ir ao site da prova. http://www.comrades.com/

Beijos e abraços"

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